Conciliação e Mediação como pilares do novo Judiciário
Um dos grandes desafios para o Poder Judiciário no século XXI consiste
em desafiar posições singularistas de que para cada conflito de interesse só
pode haver uma solução correta — a do magistrado, que sendo mantida ou
reformada em grau recursal, torna-se a “verdadeira solução” para o caso. A
ideia de que o jurisdicionado, quando busca o Poder Judiciário, o faz na ânsia
de receber a solução de um terceiro para suas questões vem progressivamente
sendo alterada para uma visão de Estado que oriente as partes para que resolvam
de forma mais consensual e amigável seus próprios conflitos e, apenas
excepcionalmente, como última hipótese, se decidirá em substituição às partes.
Naturalmente, essa noção de substituição e excepcionalidade não se
mostra, ao menos no campo teórico, em nada inovadora. Processualistas têm
sustentado há quase um século que a jurisdição deve ocupar o campo destinado à
atividade secundária de resolução de disputas. Isso porque a jurisdição possui
uma propriedade fundamental denominada “substitutividade”. Essa é tida como a
atribuição do Estado de substituir a vontade das partes envolvidas no conflito
para, quando provocado, definitivamente compor a lide.
Desde o início da década de 1990, iniciou-se o estímulo à conciliação
por meio de reformas legislativas como política pública de alteração sistêmica
do Poder Judiciário. Com o início do Movimento pela Conciliação, do Conselho
Nacional de Justiça, em 2006, passou-se a trabalhar a noção de que o Estado
precisa preparar o jurisdicionado para adequadamente utilizar o sistema público
de resolução de disputas.
Alegoricamente, imagine-se um cirurgião que, ao adentrar uma sala de
cirurgia, nota que o paciente está com roupas cotidianas e sujo — não passou
pela assepsia usual a essa prática. O mesmo, com adaptações necessárias, foi
identificado na prática brasileira da conciliação. Frequentemente, partes
chegavam à conciliação sem a adequada preparação: pelo conciliador, pela
empresa, ou mesmo pela parte pessoa física. O “cirurgião” recebia apenas breves
apontamentos teóricos de como “operar” e os “pacientes”, sem nenhuma orientação
de como se prepararem. O tempo da “cirurgia” era definido pela pauta do
cirurgião e não pela complexidade do caso. Não era sem motivo a patente
insatisfação com a conciliação no final do século XX e nos primeiros anos do
século atual.
O ano de 2012, no âmbito da conciliação, foi marcado pela preparação de
conciliadores e prepostos para uma atuação mais profissional na conciliação e
na mediação. Merecem destaque as seguintes iniciativas: i) o lançamento, pela
Secretaria de Reforma do Judiciário e pelo Conselho Nacional de Justiça, da
Escola Nacional de Mediação e Conciliação – Enam; ii) a formação de instrutores
em mediação judicial e conciliação pela Enam/CNJ-SRJ; iii) os cursos de
capacitação de prepostos de empresas; e iv) a adoção de meios de Resolução de
Disputas Online (RDOs) por empresas que, por intermédio de atendentes treinados
em técnicas de negociação e mediação, lograram índices nunca antes obtidos.
i) A Escola Nacional de Mediação e Conciliação –
Enam
Pouco tempo após o Movimento pela Conciliação ser lançado, em 2006, a
Secretaria de Reforma do Judiciário, do Ministério da Justiça, apoiou a
iniciativa. Construiu-se, então, uma das mais importantes parcerias entre os
Poderes Executivo e Judiciário para a implantação de novas forma de solução de
disputas. Desde então, tem-se trabalhado com a premissa de que é possível uma
abordagem mais pluralista dentro do próprio Poder Judiciário, aceitando-se que
podem existir diversas respostas concomitantemente corretas (e legítimas) para
uma mesma questão levada a juízo. Nessa hipótese, cabe às partes construírem a
solução para suas próprias questões e, assim, encontrarem a resposta que melhor
se adeque ao seu contexto fático. Dessa forma, passa-se a buscar o resgate,
sempre que possível, do relacionamento social pré-existente ao conflito. Aos
poucos, abandona-se a perspectiva de que, no Poder Judiciário, as partes estão
em lados opostos, para se adotar a visão de que podem estar do mesmo lado.
Nesse contexto, com o intuito de criar conjuntamente um centro de
difusão de conhecimento e prática de métodos consensuais de resolução de
conflitos, criou-se a Escola Nacional de Mediação e Conciliação - Enam, cuja
atuação se dará em três eixos. São eles: i) capacitação de operadores do
Direito, membros da academia e da sociedade civil; ii) realização de seminários
e outros eventos de difusão do conhecimento; e iii) promoção de projetos e
atividades de ensino e pesquisa.
A Enam, dirigida pelo conselheiro José Roberto Neves Amorim, do Conselho
Nacional de Justiça, e pelo secretário de Reforma do Judiciário, Flávio
Caetano, do Ministério da Justiça, começa os seus trabalhos com um ambicioso
objetivo: melhorar a percepção do jurisdicionado em relação ao Poder Judiciário
e desfazer a visão de que este consiste exclusivamente em uma instituição de
sentenças. Assim, adota-se progressivamente a perspectiva de que o Poder
Judiciário é essencialmente um órgão de aproximação de pessoas em conflito — ou
um “hospital de relações sociais”.
ii) A formação de novos instrutores em mediação
judicial e conciliação pela Enam/CNJ-SRJ
Após a identificação do reduzido número de instrutores em mediação e
conciliação no país, o CNJ e a SRJ envidaram esforços para multiplicar o número
de instrutores em mediação e conciliação no Brasil, visando a formação de
efetivos facilitadores que desempenhem suas funções satisfatoriamente para a
população. As aulas foram ministradas para servidores dos tribunais de Justiça
e voluntários, com a condição de já possuírem ampla experiência em mediação. Os
novos instrutores, para receberem seus certificados, devem lecionar cinco
cursos básicos de mediação — sem custo aos tribunais ou aos participantes — e
são também avaliados pelos seus próprios alunos.
iii) Cursos de capacitação de prepostos de empresas
Seguindo preocupação de melhor preparar os usuários para utilizar adequadamente
o sistema público de resolução de disputas — ou, como indicado acima, “preparar
o paciente para a cirurgia” —, diversos tribunais, dentre os quais o TJ-DF, o
TJ-RJ e o TJ-SP, iniciaram treinamento de capacitação de prepostos. Nesses
treinamentos, advogados e diretores jurídicos e financeiros das empresas são
estimulados a identificar falhas comuns na atuação cotidiana em conciliações,
dentre as quais destacam-se: a) desconsiderar o custo de
imagem que uma conciliação mal administrada pode gerar para a empresa. Muitas empresas
despendem significativos recursos para captar novos clientes, mas não
consideram o custo de perder um cliente em razão de uma atuação descuidada do
preposto na conciliação. Nesses treinamentos, estimula-se as empresas a
considerarem o custo da captação do novo cliente (gasto com propaganda e
marketing dividido pelo número de novos clientes por ano) ao planejarem como
será a atuação dos seus prepostos na conciliação; b) negociar na conciliação como se estivesse em audiência de
instrução. No que concerne à adequada compreensão das partes e advogados quanto às
características intrínsecas da conciliação, cumpre registrar que há uma prática
profissional específica em processos autocompositivos. Na conciliação, a adoção
de uma postura do preposto deve ser humanizada, zelosa e solucionadora, sob
pena do outro interessado/parte não se engajar de forma plena no processo de
resolução de problemas que, em essência, é o trabalho da conciliação. A
compreensão de que a conciliação seria uma instrução “disfarçada” somente
contribui para a imprópria condução da conciliação e, por conseguinte, baixa
resolutividade, excessiva litigiosidade e, naturalmente, insatisfação das
partes com seu desenvolvimento; c) tentar vencer o conflito. Ao tratar o
conflito como uma dinâmica na qual um dos envolvidos pode sair como claro
vencedor, transformando o outro em patente perdedor, frequentemente as partes
envolvidas se engajam em condutas competitivas visando mais do que vencer,
incutir a perda ao outro. Como resultado, ao menos parcialmente, ambos tendem a
perder e inadvertidamente abdicam de diversos interesses que possuem, como a
manutenção do relacionamento social pré-existente com a outra parte ou a
resolução dos pontos controvertidos como objetivamente apresentados no início
do conflito, não em razão de um acirramento do conflito que se expandiu
tornando-se “independente de suas causas iniciais”. A percepção, em um
determinado conflito, de que é necessário que a parte “vença a outra” — e não
“objetivamente resolva os pontos em relação aos quais as partes divergem” — faz
com que as partes envidem esforços para prejudicar uma à outra e não
necessariamente apenas resolvam os pontos controvertidos; d) perceber a conciliação como alternativa. A experiência dos
últimos 30 anos tem mostrado que o comprometimento com a forma de resolução de
disputa adotada (com respectivas características) influi significativamente no
adequado desenvolvimento do processo e, por conseguinte, na satisfação das
partes com a solução alcançada. Empresas e escritórios de advocacia que tratam
a conciliação ou mediação como uma “forma secundária” de resolução de disputas
tendem a não investir em treinamento de seus advogados e administradores. Como
consequência, há o exercício intuitivo desses processos, que em regra se resume
a aplicar a conduta profissional característica do processo judicial à mediação
ou à conciliação. Naturalmente, como visto acima, essa prática intuitiva, em
regra, leva ao desvirtuamento da conciliação e a consequentes custos mais
elevados (ou redução dos níveis de satisfação dos usuários).
Merece destaque que, após o treinamento de prepostos e advogados no
TJ-DF, os índices de conciliação subiram em mais de 120%. Empresas como Vivo,
Tim e Casas Bahia receberam treinamento e o Núcleo Permanente de Mediação e
Conciliação ofereceu esse treinamento sem nenhum custo aos participantes.
iv) o estímulo à adoção de meios de Resolução de
Disputas Online (RDOs) por empresas, por intermédio de atendentes treinados em
técnicas de negociação e mediação
A empresa de telecomunicações SKY Brasil Serviços Ltda. recebeu o prêmio
“Conciliar é legal” do Conselho Nacional de Justiça em razão do desenvolvimento
de um projeto de prevenção de litígios. Trata-se de um totem de negociação
direta, informalmente chamado de “totem de conciliação”, ao qual se redireciona
uma demanda que originalmente seria proposta em um juizado especial para uma
videoconferência com um atendente treinado em técnicas de negociação e
mediação. Com isso, a referida empresa buscou reduzir a perda de clientes em
razão de demandas judiciais propostas. O projeto iniciado no primeiro semestre
deste ano até o presente momento alcançou índices de acordo de quase 100%. Da
referida prática, merece destaque a preocupação da Sky Brasil de manter clientes
ao final do processo de resolução de disputas e zelar pela estratégia de
marketing da empresa, cuja preocupação de “ter os clientes mais satisfeitos”
tem se estendido do momento da captação de novos clientes até o direcionamento
de processos de resolução de disputa. Ademais, como indicado acima, consta
implicitamente a política institucional da citada empresa de que a conciliação
seja o principal meio de resolução de disputas, deixando-se o processo judicial
como meio excepcional.
Com muito bem indicado pelo conselheiro Neves Amorim, o Poder Judiciário
tem passado por mudanças profundas quanto à sua essência, deixando de ser um
espaço desumanizado de prolação de sentenças para ser um centro vivo de
soluções reais para o jurisdicionado. Nota-se a formação de um “Judiciário
2.0”, que correlaciona o conceito de acesso à Justiça não com o acesso à norma
positivada aplicada ao caso concreto — o que o manteria significativamente
singularista —, mas com a efetiva satisfação do jurisdicionado, dentro de
parâmetros realizáveis, com o processo de resolução de disputas. Dessa forma, a
própria concepção de Direito é costurada com uma abordagem mais pluralista.
Esse “Judiciário 2.0” está tão somente adequando-se à essa nova concepção de
Direito apresentada contemporaneamente por diversos autores, dos quais se
destaca Boaventura de Souza Santos, segundo o qual “concebe-se o direito como o
conjunto de processos regularizados e de princípios normativos, considerados
justificáveis num dado grupo, que contribuem para a identificaçãoe prevenção de litígios e para a
resolução destes através de um discurso argumentativo, de amplitude variável,
apoiado ou não pela força organizada”[1].
[1] SANTOS, Boaventura de Sousa. O discurso e o poder; ensaio sobre a
sociologia da retórica jurídica. Porto Alegre : Fabris, 1988, p. 72.
André Gomma de Azevedo é
juiz de Direito na Bahia, pesquisador associado da Universidade de Brasília e
membro do Comitê Gestor da Conciliação do Conselho Nacional de Justiça.
Revista Consultor Jurídico, 1º de janeiro de
2013
Após a identificação do reduzido número de instrutores em mediação e conciliação no país, o CNJ e a SRJ envidaram esforços para multiplicar o número de instrutores em mediação e conciliação no Brasil, visando a formação de efetivos facilitadores que desempenhem suas funções satisfatoriamente para a população. As aulas foram ministradas para servidores dos tribunais de Justiça e voluntários, com a condição de já possuírem ampla experiência em mediação. Os novos instrutores, para receberem seus certificados, devem lecionar cinco cursos básicos de mediação — sem custo aos tribunais ou aos participantes — e são também avaliados pelos seus próprios alunos.
Seguindo preocupação de melhor preparar os usuários para utilizar adequadamente o sistema público de resolução de disputas — ou, como indicado acima, “preparar o paciente para a cirurgia” —, diversos tribunais, dentre os quais o TJ-DF, o TJ-RJ e o TJ-SP, iniciaram treinamento de capacitação de prepostos. Nesses treinamentos, advogados e diretores jurídicos e financeiros das empresas são estimulados a identificar falhas comuns na atuação cotidiana em conciliações, dentre as quais destacam-se: a) desconsiderar o custo de imagem que uma conciliação mal administrada pode gerar para a empresa. Muitas empresas despendem significativos recursos para captar novos clientes, mas não consideram o custo de perder um cliente em razão de uma atuação descuidada do preposto na conciliação. Nesses treinamentos, estimula-se as empresas a considerarem o custo da captação do novo cliente (gasto com propaganda e marketing dividido pelo número de novos clientes por ano) ao planejarem como será a atuação dos seus prepostos na conciliação; b) negociar na conciliação como se estivesse em audiência de instrução. No que concerne à adequada compreensão das partes e advogados quanto às características intrínsecas da conciliação, cumpre registrar que há uma prática profissional específica em processos autocompositivos. Na conciliação, a adoção de uma postura do preposto deve ser humanizada, zelosa e solucionadora, sob pena do outro interessado/parte não se engajar de forma plena no processo de resolução de problemas que, em essência, é o trabalho da conciliação. A compreensão de que a conciliação seria uma instrução “disfarçada” somente contribui para a imprópria condução da conciliação e, por conseguinte, baixa resolutividade, excessiva litigiosidade e, naturalmente, insatisfação das partes com seu desenvolvimento; c) tentar vencer o conflito. Ao tratar o conflito como uma dinâmica na qual um dos envolvidos pode sair como claro vencedor, transformando o outro em patente perdedor, frequentemente as partes envolvidas se engajam em condutas competitivas visando mais do que vencer, incutir a perda ao outro. Como resultado, ao menos parcialmente, ambos tendem a perder e inadvertidamente abdicam de diversos interesses que possuem, como a manutenção do relacionamento social pré-existente com a outra parte ou a resolução dos pontos controvertidos como objetivamente apresentados no início do conflito, não em razão de um acirramento do conflito que se expandiu tornando-se “independente de suas causas iniciais”. A percepção, em um determinado conflito, de que é necessário que a parte “vença a outra” — e não “objetivamente resolva os pontos em relação aos quais as partes divergem” — faz com que as partes envidem esforços para prejudicar uma à outra e não necessariamente apenas resolvam os pontos controvertidos; d) perceber a conciliação como alternativa. A experiência dos últimos 30 anos tem mostrado que o comprometimento com a forma de resolução de disputa adotada (com respectivas características) influi significativamente no adequado desenvolvimento do processo e, por conseguinte, na satisfação das partes com a solução alcançada. Empresas e escritórios de advocacia que tratam a conciliação ou mediação como uma “forma secundária” de resolução de disputas tendem a não investir em treinamento de seus advogados e administradores. Como consequência, há o exercício intuitivo desses processos, que em regra se resume a aplicar a conduta profissional característica do processo judicial à mediação ou à conciliação. Naturalmente, como visto acima, essa prática intuitiva, em regra, leva ao desvirtuamento da conciliação e a consequentes custos mais elevados (ou redução dos níveis de satisfação dos usuários).
A empresa de telecomunicações SKY Brasil Serviços Ltda. recebeu o prêmio “Conciliar é legal” do Conselho Nacional de Justiça em razão do desenvolvimento de um projeto de prevenção de litígios. Trata-se de um totem de negociação direta, informalmente chamado de “totem de conciliação”, ao qual se redireciona uma demanda que originalmente seria proposta em um juizado especial para uma videoconferência com um atendente treinado em técnicas de negociação e mediação. Com isso, a referida empresa buscou reduzir a perda de clientes em razão de demandas judiciais propostas. O projeto iniciado no primeiro semestre deste ano até o presente momento alcançou índices de acordo de quase 100%. Da referida prática, merece destaque a preocupação da Sky Brasil de manter clientes ao final do processo de resolução de disputas e zelar pela estratégia de marketing da empresa, cuja preocupação de “ter os clientes mais satisfeitos” tem se estendido do momento da captação de novos clientes até o direcionamento de processos de resolução de disputa. Ademais, como indicado acima, consta implicitamente a política institucional da citada empresa de que a conciliação seja o principal meio de resolução de disputas, deixando-se o processo judicial como meio excepcional.
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