O que diz o novo texto
O Acesso à Justiça
Através da leitura dos artigos do
Anteprojeto, constata-se claramente que a intenção da Comissão responsável por
sua redação foi a de incentivar a utilização dos métodos alternativos de
solução de conflitos, principalmente da conciliação e da mediação, no curso do
processo.
Tal posição, além de louvável, diante
da elevada carga de processos que suportam os juízes e da conseqüente
morosidade do Poder Judiciário, acompanha o que Mauro Cappelletti denominou, ao
discorrer sobre o movimento de acesso à justiça, de terceira “onda renovatória”
do processo, que centra sua atuação na simplificação dos procedimentos, do
direito processual e do direito material e no conjunto geral de institutos e
mecanismos, pessoas e procedimentos, utilizados para processar e mesmo prevenir
litígios.1
Desta forma, apesar de não superadas
totalmente as “ondas” anteriores preocupadas com a representação legal dos
economicamente necessitados e com a efetividade de direitos de indivíduos e
grupos, a “terceira onda” do acesso à justiça utiliza-se de suas técnicas, e
busca reformas, apontando para alterações no direito substantivo, nas formas de
procedimento e na estrutura dos tribunais, com o uso de pessoas leigas e de
mecanismos privados e informais de solução de litígios, visando atingir o
escopo magno da jurisdição de pacificação social.
Seguindo esse raciocínio, a Comissão
estabeleceu entre os deveres do juiz, no artigo 107, inciso IV, o de “tentar
prioritariamente e a qualquer tempo, compor amigavelmente as partes,
preferencialmente com auxílio de conciliadores e mediadores
Assim, pode-se considerar relevante a
redação deste inciso, mais ampla que do artigo 125, inciso IV, do CPC em vigor,
que apenas menciona a conciliação, permitindo que “a qualquer tempo” possa o
magistrado tentar conciliar as partes, permitindo mas não priorizando a
tentativa de composição das partes no curso do processo, deixando de mencionar,
ainda, que a mesma deveria preferencialmente ser levada a efeito com o auxílio
de terceiros facilitadores (conciliadores e mediadores).
Não bastasse isso, o artigo 135 do
uAnteprojeto dispõe que a realização da conciliação ou da mediação deve ser
“estimulada” no curso do processo, não só pelos magistrados, mas por todos os
operadores do Direito (advogados, Defensores Públicos e membros do
Ministério Público), de onde se depreende, mais uma vez, a intenção da Comissão
de incluir definitivamente a solução não adversarial de conflitos, através da
conciliação e da mediação, como complementar à adversarial, através da
sentença, afastando a idéia de que tais formas de solução de conflitos ferem o
monopólio da jurisdição (art. 5o, inciso XXXV, da CF – “A lei não excluirá da
apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”).
Portanto, incluir o incentivo à
utilização dos métodos alternativos de solução de conflitos como um dos deveres
dos magistrados, não significa ingerência indevida na atividade judicante, como
pensam muitos, mas sim, intenção de tornar efetivo o acesso à justiça, como
“acesso à ordem jurídica justa”, que segundo o Professor Kazuo Watanabe,
reflete não só o direito do jurisdicionado de recorrer ao Poder Judiciário, mas
também e principalmente o direito de obter uma solução, célere, justa, adequada
e efetiva para o seu conflito.
2. os conciliadores e mediadores como
“auxiliares da justiça”:
O Anteprojeto, a fim de valorizar a
atividade dos conciliadores e mediadores, que hoje atuam como meros
voluntários, alçou-os à condição de “auxiliares da justiça”, incluindo-os no
Capítulo III do Novo Código (art. 119), aplicando a eles os mesmos motivos de
impedimento e suspeição dos magistrados (art.118), e equiparando-os a outros
auxiliares da justiça: escrivão, oficial de justiça, perito, depositário,
administrador e intérprete.
Nesse Capítulo, ao discorrer o
Anteprojeto sobre as atividades dos “auxiliares da justiça”, incluiu na Seção
V, os conciliadores e mediadores judiciais, regulamentando o seu trabalho
perante os tribunais.
E, no artigo 137, §1o, estabeleceu a
obrigatoriedade dos tribunais manterem um registro de conciliadores e
mediadores, colocando entre os requisitos que devem ser exigidos para a
inclusão no cadastro, a necessária inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil e
a capacitação mínima, por meio de curso realizado por entidade credenciada pelo
tribunal.
A prática tem demonstrado que a
capacitação mínima é essencial para o bom desenvolvimento da atividade de
conciliadores e mediadores, pois além de vocação e reputação ilibada, esses
terceiros devem conhecer as técnicas de cada um desses métodos de solução de
conflitos, sob pena de não se atingir a tão propalada pacificação social.
A necessidade de inscrição na Ordem dos
Advogados do Brasil, porém, soa como “reserva de mercado”, pois impede que
outros profissionais, como psicólogos, assistentes sociais, estagiários de
Direito, juízes, promotores e defensores públicos aposentados, que já atuam de
forma satisfatória como conciliadores e mediadores, em várias Comarcas,
continuem exercendo essa atividade.
Além do mais, diante da
multidisciplinaridade que envolve os métodos alternativos de solução de
conflitos não se justifica tornar obrigatória para o exercício da função de
conciliador e mediador a formação em Direito e, menos ainda, a inscrição na
Ordem dos Advogados do Brasil, o que presume exercer o conciliador e mediador a
profissão de advogado.
Por fim, resta dizer, que é incoerente
que a própria Ordem dos Advogados do Brasil que, até pouco tempo, impedia os advogados
de atuarem como mediadores por vislumbrar nessa atividade uma forma de captação
de clientela, agora tente impor, através do Código de Processo Civil, que
apenas os profissionais de Direito inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil
possam atuar como conciliadores e mediadores.
3. Remuneração de conciliadores e
mediadores
Neste ponto, o Anteprojeto apenas
prevê, em seu artigo 142, que o conciliador e o mediador serão remunerados pelo
seu trabalho, deixando a cargo dos tribunais a regulamentação dessa
remuneração, segundo parâmetros estabelecidos pelo Conselho Nacional de
Justiça.
A remuneração desses terceiros
facilitadores é conveniente e necessária, a fim de motivá-los no exercício e no
aprimoramento da atividade, pois é impossível exigir que pessoas que nada
recebem invistam em capacitação, que constitui elemento indispensável para o
êxito do trabalho; ainda mais se pensarmos que, de acordo com o Anteprojeto,
trata-se de “auxiliares da justiça”, que como os demais, devem ser remunerados
pelo seu trabalho.
E andou bem a Comissão ao estabelecer,
que o tribunal deverá regulamentar a forma de remuneração, apenas estabelecendo
a sua obrigatoriedade no artigo 142, pois apesar de ser permitida a disciplina
da matéria através de lei federal (vide as despesas processuais), no caso de
conciliadores e mediadores deve ser observada a realidade local (em alguns
Estados, por exemplo, os conciliadores e mediadores são servidores do Tribunal
de Justiça, concursados).
A título de sugestão, uma forma
adequada de remuneração seria aquela prevista no Projeto de lei 94/2002
(Projeto de Lei de Mediação), em tramitação no Congresso Nacional (art. 38,
parágrafo único e art. 42).
De acordo com tal Projeto de lei, se a
mediação tiver êxito, ficam as partes dispensadas do pagamento das despesas
processuais e do ônus da sucumbência, que serão substituídos pelos honorários
do mediador. Já se a mediação for infrutífera, as partes devem recolher as
despesas processuais, com o abatimento do valor referente aos honorários do
mediador.
Apenas se a parte for beneficiária da
Assistência Judiciária Gratuita é que caberá ao Estado suportar os honorários
do mediador por meio de dotação orçamentária do respectivo tribunal; porém,
nesses casos, nada muda, uma vez que o Estado, de qualquer forma, não recebe as
despesas processuais, nem custas.
4. Audiência de conciliação obrigatória
O “caput” do artigo 333, do Anteprojeto
estabelece a obrigatoriedade do juiz designar audiência de conciliação no
início do processo, ao verificar que a petição inicial preenche os requisitos
essenciais.
E nem se argumente que a designação
desta audiência atrasa o andamento do processo, acrescentando-lhe uma fase,
porque o § 7o, do mesmo artigo 333, possibilita que o juiz a dispense quando
constatar que a conciliação é inviável ou quando as partes manifestarem
expressamente sua disposição contrária.
Assim, o dispositivo não fere nem a
voluntariedade da conciliação (pois as partes podem se manifestar contra a
designação), nem o princípio da inafastabilidade da jurisdição (art. 5o, inciso
XXXV, da CF). E, quanto a este último, como já dito acima, hoje não há dúvida
de que o acesso à justiça inclui o acesso aos meios alternativos de solução de
conflitos, havendo uma relação de complementaridade entre estes e a solução
adjudicada através da sentença; ainda mais se levarmos em consideração que a
conciliação e a mediação, aqui tratadas, são disciplinadas pelo próprio Poder
Judiciário, e se tivermos em mente que o acesso à justiça visa o acesso a uma
solução, célere, justa e efetiva, que leve à pacificação das partes, a qual nem
sempre é obtida pela sentença.
Em outras palavras, apesar da
designação da audiência de conciliação, as partes poderão optar por não
comparecer à mesma, preferindo a solução adjudicada do conflito, bastando, para
tanto, que se manifestem expressamente nesse sentido. E, mesmo comparecendo à
audiência, após conhecer o procedimento, poderão optar por não se sujeitar ao
mesmo, preferindo o prosseguimento do processo. Há ainda casos, nos quais
impossível a tentativa de conciliação, cabendo ao magistrado realizar essa
triagem; assim como também há casos em que necessários atos de força ou
expropriação, que apenas podem ser deferidos pelo Poder Judiciário.
Por outro lado, tendo em vista que não
se trata de conciliação prévia obrigatória, mas de conciliação incidental
obrigatória, quando já há processo instaurado, não se pode afirmar que tal
audiência impede o acesso ao Poder Judiciário. Por fim, resta dizer que a
obrigatoriedade é conveniente, neste momento, até mesmo para que haja a mudança
de mentalidade dos operadores do Direito, arraigada na “cultura da sentença”,
para a “cultura da pacificação”, nos dizeres do Professor Kazuo Watanabe2.
Na conciliação obrigatória
vislumbra-se um caráter educativo, pois através dela, as partes e advogados
tomam conhecimento da existência e do funcionamento desse método de solução de
conflitos, podendo vir, no futuro, a utilizá-lo de forma voluntária, evitando a
sentença e, até mesmo, a propositura da ação, o que restou demonstrado em
experiências de outros países como Argentina (mediação prévia obrigatória) e
Estados Unidos.
Em relação a este último país, por
exemplo, o Juiz Federal Wayne Brazil (U.S. District Court for the Northem
District of Califórnia, desde 1984), no I Congresso de Mediação Judicial, que
foi realizado em março de 2008, em Brasília3, afirmou que a mediação não teria
crescido tanto se o Tribunal não tivesse tomado as rédeas para que as partes e
seus advogados participassem, pois apenas assim, passaram a conhecer os
benefícios desse meio alternativo de solução de conflitos, afastando-se os
advogados do medo de perderem seu sustento e passando as partes a reconhecer os
benefícios que seus advogados tinham lhes proporcionado ao participarem da
mediação, recomendando-os.
Ainda realçou o fato de, no setor
público, haver um controle de qualidade dos mediadores, o que não ocorre no
setor privado, motivo pelo qual, neste último, qualquer um, mesmo despreparado,
pode se intitular mediador e um cliente pouco experiente, se submeter a ele,
não sabendo disso.
Assim, no Brasil, neste momento, a
integração dos meios alternativos de solução de conflitos ao Poder Judiciário é
necessária, a fim de que haja a divulgação desses meios e seus benefícios e, em
contrapartida, a fiscalização e o controle do serviço prestado por esses
terceiros facilitadores. Isso porque, para que se torne possível a simples
opção pelas partes, deve haver informação suficiente. Ou seja, todos, desde o
cidadão comum até os mais esclarecidos, devem conhecer suficientemente os meios
de solução de conflitos disponíveis, com suas peculiaridades, para que possam
optar com consciência e de acordo com seus reais interesses, pois sem
conhecimento não há que se falar em liberdade de escolha.
Portanto, podemos concluir que, no que
diz respeito aos métodos alternativos de solução de conflitos, estamos no caminho
certo.
2 Para saber mais, leia-se WATANABE,
Kazuo. Cultura da sentença e cultura da pacificação.
In: MORAES, Maurício Zanoide; YARSHELL,
Flávio Luiz (Coords.). Estudos em homenagem à professora Ada
PellegriniGrinover. São Paulo: DPJ Ed., 2005. p. 684-690. 3 BRAZIL, Wayne.
Focos de resistência para a criação e expansão de processos não adversariais de
resolução de disputas e suas causas.
In: I CONGRESSO BRASILEIRO DE MEDIAÇÃO
JUDICIAL, 2008, Brasília. O Congresso foi realizado nos dias 03, 04 e 05 de
março de 2008, no Parlamundi da LBV, em Brasília/ DF, e organizado pelo Centro
de Resolução Não Adversarial de Conflitos do Tribunal de Justiça do Distrito
Federal e dos Territórios.
Por Valéria Ferioli Lagrasta
Luchiari
Fonte: Revista Resultado Ano 8 No 44
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